Mars To Travel
quarentena: semana 1
Fomos mandamos para casa. Despedimo-nos dos nossos colegas de trabalho sem saber muito bem quando os voltamos a encontrar.
Fazer teletrabalho não é algo normal no meio em que trabalho, mas há muito que considero que é uma possibilidade real e eficiente. Um pouco à força, com portáteis desenrascados e em poucos dias, lá fomos.
Mas será isto do teletrabalho uma questão?! Ninguém pensa que seja. É muito mais do que isso.
O teletrabalho veio quebrar a minha rotina diária, já não apanho o metro até ao escritório. Antes do seu inicio, não evitou que me fosse possivel testemunhar a redução de pessoas no metro, nas ruas e no trânsito.
Não evitou que no primeiro dia de regresso de férias nos Estados Unidos, senti-se aquele receio geral dos outros, perante mim, como se tivessem medo de se aproximar.
Mais tarde ou mais cedo, em poucos dias, eu própria já não estava confortável em utilizar os canais públicos para me deslocar, o vírus galgava a uma velocidade veloz, e continuar a ir de metro só ampliava o risco para mim, e para quem se cruzava comigo.
Tendo estado num dos aeroportos mais movimentados do mundo há meia dúzia de dias, havia uma vozinha que me mandava ficar em casa, assim fiz.
Hoje já passaram 14 dias. E nada de sintomas. Melhor, nada de sintomas que não sejam já normais em pleno início de primavera, como o nariz a pingar e os frenéticos espirros pela manhã.
A verdade é que isto é tão mais do que teletrabalho ou inibição de rotinas: É deixar de fazer o que se quer, não só para tua proteção, mas também para proteção dos que se cruzem contigo.
Não vivo perto da minha família, e seria irresponsável deslocar-me até lá a meio deste pedaço de história que nestes dias vivemos.
Custa-me estar confinada num pequeno apartamento, sem grandes distrações, sabendo que estaria bem melhor no campo, com os que amo, com espaço suficiente para sair à rua sem me cruzar com ninguém.
Isto põe tudo em perspectiva.
A primeira semana foi tranquila, apesar de não ser possível preparar muito a mente para isto, a adaptação ao teletrabalho e a quebra das rotinas foi realmente uma transição calma.
Estou a trabalhar na minha mesa de jantar, com o meu marido à minha frente, conseguimos fazê-lo com alguma naturalidade e facilidade.
Ele é extremamente focado, e eu coloco os meus headphones ficando imediatamente focada no trabalho.
Mas, parece-me, pelo menos, para já, que o importante é manter as rotinas possíveis, para nos mantermos vivos e em alerta durante o dia.
Para mim, nesta primeira semana, foi essencial:
— (parece basico, mas) acordar a uma hora em que nos seja possível tomar o pequeno almoço e um duche antes de ligar o PC para trabalhar.
— Cumprir horários, começar a trabalhar a horas, e acabar na minha hora também.
— Cozinhar, cozinhar algo que me deixe feliz. Tentamos cozinhar duas vezes por dia. Numa semana normal, apenas jantamos em casa, e, na verdade, nem sempre cozinhamos, pois fica mais fácil optar por jantar algo simples e que não dê trabalho, como sopa ou uma salada: Agora não. Agora estamos a tentar rentabilizar estes momentos do dia, de modo a que sejam satisfatórios e desafiantes – quase como um hobbie diário-, de modo a obrigar-nos a utilizar aquelas receitas que há meses estamos para testar.
— Fazer pausas, fazemos pausas do PC e do trabalho, seja para estender roupa, beber café, para cumprir os rituais de limpeza e hidratação da tua pele de pele, ouvir um podcast, escolher o que cozinhar para o jantar ou que filme ver à noite. Vale tudo.
— Desenvolver um hobbie novo, ou regressar a hobbies antigos. Em relação a hobbies antigos, além de cozinhar, gosto de costurar – mas sinceramente requer paciência que ultimamente não tenho -, gosto de pintar, ouvir música, tirar fotografias, ler e escrever. Esta semana cozinhei algumas refeições, fiz uns bombons de chocolate (receita que roubei à @senassaudaveis) escrevi, e ouvi música (claro). Mas nos próximos dias espero poder reorganizar fotos de viagens que tenha feito, pintar e ler mais. Em relação a começar novos hobbies, tenho estado atenta a cursos de escrita criativa, e mais recentemente existem algumas universidades internacionais a oferecer cursos online grátis Aqui – vou tentar ver se algum me interessa.
— Exercício físico diário, ao final do dia o Thomas gosta de correr. Eu sou a pessoa mais preguiçosa do planeta, mas tenho obrigado a minha pessoa a ir com ele. Num mínimo de dia-sim-dia-não. Mas confesso que, quero forçar-me a fazê-lo todos os dias. A primeira razão prende-se com as largas horas em casa: melhorará o meu estado de espírito sair um pouco. A segunda razão é óbvia, estamos mais tempo em casa, apesar de termos imenso cuidado com a comida, vamos comer mais certamente. Faz-nos bem ao corpo e a alma. Podemos fazer treinos em casa, ou ir para espaços como a Bela Vista ou Monsanto.
— Ligar a televisão apenas à noite, esta é uma das chaves para não me sentir deprimida. Só me sento no sofá depois das 18h, e só aí ligo a TV, mantendo-a desligada durante o dia. Nem durante a hora do almoço tenho esse hábito, felizmente. Isto evita que os meus dias sejam todos uma espécie de domingo de ronha, em que ao final do dia o facto de não ter saído de casa me faça sentir uma loser preguiçosa.Também não me parece que ver séries, filmes ou mesmo junk TV durante o dia nos faça bem. Isto, sem juízos de valor, quem me tira o Keeping Up With The Kardashians ou o Say Yes to the Dress, tira-me tudo, mas, não o quero ver à luz do dia, vou sentir-me inútil.
— Ligar a família e amigos, fazer videochamadas, trocar mensagens (já chega de vídeos acerca do coronavírus ok?!) vai ajudar-nos a manter a normalidade, e a compensar, em certa medida, a vida social que agora não nos permitimos a ter. Já conhecem a aplicação HouseParty?!
— Abrir um garrafa de vinho todas as noites: permitir-nos a isso faz com que os rituais diários se vinquem ainda mais. Além de que, nos ajuda a relaxar ao final do dia.
Estas são as minhas rotinas possíveis ao longo da última semana, têm-me permitido a ficar sã. Se seguir isto tudo todos os dias é fácil ou é suficiente? Não.
Mais do que nunca, estamos, e vamos estar, cada vez mais expostos a nós próprios, e aos nossos pensamentos.
Processar tudo isto com a devida calma e seriedade será necessário para ultrapassar isto da melhor maneira. Nunca fomos confrontados com nada deste género. De repente, direitos e liberdades adquiridas foram vedadas por um motivo maior, e nenhum de nós hesitou em concordar com isso.
Estas rotinas não controlam os nossos pensamentos, e o espaço livre que nos vai aparecer na mente trará reflexões profundas, questionará muito das nossas opções até ao dia de hoje: a maneira como vivemos e tratamos as nossas prioridades.
Pessoalmente, além de estar vedada aos meus amigos e família, continuo a trabalhar, e estou numa situação super privilegiada, não sinto à partida que o meu posto de trabalho esteja ameaçado. Agradeço por isso – não sei bem a quem.
No reverso da medalha tenho pessoas muito próximas que são obrigadas a continuar a trabalhar, por actuarem em serviços indispensáveis neste contexto que vivemos ou por simples teimosia das entidades patronais; pessoas próximas que desvalorizam a situação, colocado em riscos os que mais dependem deles; pessoas que têm negócios pequenos e que tentam a todo o custo não deixar de ter rendimentos; pessoas que não estão a saber lidar com a situação de modo pacífico, têm medo e estão a sofrer; amigos que vivem sozinhos e que me preocupam; amigas grávidas que estão em pânico. E tudo isto é válido.
Ninguém nos ensinou a lidar com isto, ou sequer o previu, por isso quero estar no meu melhor: por mim, e pelos meus.
Não me posso esquecer de me colocar numa situação confortável, com rotinas, com sorrisos, tempo para os amigos e para fazer o que me apetece sem pensar demasiado, para que, num momento de maior fragilidade tenha ‘’onde’’ me agarrar.
Num mundo em que somos constantemente ‘’ensinados’’ a não reagir, a viver sob o ‘’politicamente correcto’’, a controlar os nossos feelings, as nossas frustrações e as coisas que nos deixam tristes, num mundo em que poucos se permitem a dizer e demonstrar o que realmente sentem, desafio-me (e a ti que lês isto) a mais do que nunca ser fiel ao que sou, para estar forte para o que aí venha.
Na primeira semana, o desafio foi ficar em casa. E uma semana já passou. Mas questiono-me acerca das que se seguem.
Que a quarentena nos deixe ser nós próprios, com os nossos medos e excessos, com as coisas que mais amamos e nos dão prazer – com o bom e o mau – dentro dos nossos novos limites.
Que nos traga autenticidade, que nos traga, a cada um de nós, verdade que o Mundo às vezes nos bloqueia.
Vou escrever ao longos destes dias, essencialmente para mim, e hoje, apetecia-me escrever acerca da necessidade desta autenticidade vinda de dentro, aquela que às vezes nos esquecemos de ter, mais do que nunca sinto que preciso disso.
Sendo esta uma experiência limite, vamos precisar de nós próprios em plena força para vivê-la, sem vozes do fundo.
Em miúda cresci sem valorização da minha criatividade, da minha identidade ou das minhas necessidades, uma das coisas que me permitiu a aprender mais sobre mim mesma, foi a música. (escrevo-o enquanto toca DNA – Kendrick Lamar).
Tem sido esta arte um dos meus grandes refúgios.
No tempo em que me tentavam limitar, até os gostos musicais, ouvi muitas vezes a mesma frase: ‘’só ouves música negra’’.
Foi em música negra que me refugiei esta semana, como em tantos outros momentos (ou será melhor catalogá-la de afro-americana?! Que se foda, Rap, Trap, Rap Electrónico, R&B contemporâneo: o que quiserem).
Foi nela que me refugiei para encontrar um equilíbrio, para encontrar a melhor maneira de lidar com isto (POWER – Kanye West).
Pois acredito que a força e a inspiração vêm das coisas mais pequenas que possamos colocar na nossa vida, um livro, uma música ou um filme que te reporte algo de bom.
Compilei-a numa playlist crua, autêntica, verdadeira, forte e empoderada, que me ajudou nesta primeira semana (digo enquanto toca GOOSEBUMPS – Travis Scott).
Fiquem a salvo!
Até para a semana,
Mars.